Nos últimos dias pudemos acompanhar nos veículos de comunicação e redes sociais, notícias sobre o cenário histórico de queimadas em diversos locais do estado de São Paulo simultaneamente. A intensidade, extensão e prejuízos causados pelos focos de incêndio despertou a atenção de muitas pessoas para o ocorrido. Apesar de ser algo inédito para o estado, outras regiões do Brasil enfrentam situações ainda mais graves, considerando período de duração e dimensão das áreas atingidas.
Além das discussões sobre as questões climáticas e as ações humanas que agravam esses problemas, é fundamental refletir sobre os impactos a longo prazo que as queimadas e outros fenômenos têm sobre a saúde. A poluição do ar, intensificada por tais eventos, não afeta apenas o meio ambiente, mas também representa um risco crescente para a saúde humana, contribuindo para o desenvolvimento de doenças crônicas e neurodegenerativas, como as demências.
Em relatório publicado recentemente, no mês de julho de 2024, a comissão da importante revista The Lancet, atualizou os fatores de risco modificáveis para o desenvolvimento de demências. Atualmente são considerados 14 os fatores de risco, sendo eles: baixa escolaridade, perda auditiva, hipertensão, tabagismo, obesidade, depressão, inatividade física, diabetes, consumo excessivo de álcool, lesão cerebral traumática, isolamento social, perda de visão não tratada, níveis elevados de colesterol LDL e poluição do ar.
De acordo com os pesquisadores, a exposição a poluentes por partículas do ar ocorre ao longo de todo o ciclo vital, tanto em ambientes domésticos através de fogões à lenha residenciais, por exemplo, quanto em ambientes externos com a queima de combustível por veículos de transporte, por exemplo. As micro ou macro exposições geram efeitos prejudiciais para a cognição, aumentando a possibilidade de declínio cognitivo e demências.
Mas como essas partículas afetam a saúde cognitiva? Existem quatro fatores principais que justificam essa correlação:
1) Inflamação Sistêmica: A inalação de partículas finas, como PM2.5, presentes na poluição do ar, provoca uma resposta inflamatória no corpo. Essas partículas entram na corrente sanguínea e desencadeiam uma inflamação sistêmica, que pode chegar ao cérebro. A inflamação crônica no cérebro está associada à neurodegeneração, um fator de risco para o desenvolvimento de demências, como a Doença de Alzheimer.
2) Estresse Oxidativo: As partículas poluentes geram espécies reativas de oxigênio no organismo, causando estresse oxidativo. Esse desequilíbrio entre a produção de radicais livres e a capacidade do corpo de neutralizá-los danifica células cerebrais, contribuindo para o declínio cognitivo e neurodegeneração.
3) Barreira Hematoencefálica: A poluição do ar pode comprometer a integridade da barreira hematoencefálica, uma estrutura que protege o cérebro de substâncias tóxicas no sangue. Quando essa barreira é danificada, poluentes e inflamações podem penetrar no cérebro mais facilmente, exacerbando os danos neuronais e acelerando processos neurodegenerativos.
4) Deposição de Partículas no Cérebro: Algumas partículas ultrafinas e metais pesados presentes na poluição do ar podem atravessar diretamente a barreira hematoencefálica ou entrar no cérebro através do nervo olfativo, acumulando-se em áreas cerebrais críticas, como o hipocampo e o córtex, que são essenciais para a memória, por exemplo. Essas partículas podem interferir no funcionamento normal dos neurônios, acelerando o declínio cognitivo.
Muitos desses fatores correlacionam-se com variáveis socioeconômicas. Entre outros aspectos, a hipertensão, a diabetes, a baixa escolaridade e a exposição à poluição do ar são mais prevalentes em países de baixa e média renda. Em consonância, também é significativo o número de pessoas que convivem com demências nesses países.
Diante do cenário alarmante de queimadas e a consequente intensificação da poluição do ar, é essencial reconhecermos os impactos de longo prazo que esses fenômenos têm sobre a saúde humana. A correlação entre fatores de risco socioeconômicos e a prevalência de demências reforça a necessidade de um enfoque multidisciplinar e equitativo na prevenção dessas doenças, priorizando não apenas o controle ambiental, mas também a promoção da saúde e educação em populações de baixa e média renda. A proteção do ambiente é, portanto, indissociável da proteção da saúde cognitiva e do bem-estar das presentes e futuras gerações.
Referências
LIVINGSTON, Gl et al. Dementia prevention, intervention, and care: 2024 report of the Lancet standing Commission. The Lancet, v. 404, n. 10452, p. 572-628, 2024. DOI 10.1016/S0140-6736(24)01296-0. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(24)01296-0. Acesso em: 29 ago. 2024.
SILVA, D. R. R. Poluição atmosférica como fator de risco para o déficit cognitivo no Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto - ELSA Brasil . 2020. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Medicina, University of São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/D.5.2020.tde-05022021-131817. Acesso em: 29 ago. 2024.
PETERS, R. et al. Air pollution and dementia: a systematic review. Journal of Alzheimer's Disease, v. 70, n. s1, p. S145-S163, 2019. DOI 10.3233/JAD-180631.
Foto de Luke Porter na Unsplash
Assinam este texto:
Profª Msc. Gabriela dos Santos – Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Gerontologia pela Universidade de São Paulo (USP), Graduada em Gerontologia pela USP, com Extensão pela Universidad Estatal Del Valle de Toluca. Membro do Grupo de Estudos em Treino Cognitivo da Universidade de São Paulo.
Profa. Dra. Thais Bento Lima da Silva – Gerontóloga formada pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra e Doutora em Ciências com ênfase em Neurologia Cognitiva e do Comportamento, pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Docente do curso de Bacharelado e de Pós-Graduação em Gerontologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), pesquisadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretora científica da Associação Brasileira de Gerontologia (ABG). Membro da diretoria da Associação Brasileira de Alzheimer- Regional São Paulo. É parceira científica do Método Supera. Coordenadora do Grupo de Estudos em Treino Cognitivo da Universidade de São Paulo.
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